Algumas colocações sobre afetos - Transcrição de parte do vídeo "Afeto, emoção e sentimento na psicanálise" (20 set 2017), do canal do YouTube de Christian Dunker
"A gente pode falar em afeto quando a gente se refere à aquilo que incide sobre o sujeito e como isso que incide sobre o sujeito – e ao Freud, como um estímulo externo; ou dirá o Lacan, como um significante - , como isso nos auto afeta. Como isso é experienciado e como isso é tramitado em termos libidinais e em termos representacionais. No fundo, é como a gente escuta afetivamente algo. Em como a gente é afetado e tocado pelo outro, pelo mundo.
Dos afetos, como dirá o Lacan: a angústia é aquele que não mente. Porque ele é a afetação mais básica de estranhamento na relação com o outro. É quando eu percebo o outro. Imagina uma criança, que começa a se dar conta de que é o não-eu: primeiro aparece como indiferença; quando logo percebe, isso marca, então, um sinal de angústia.
Os outros afetos são, portanto, qualificações da libido. São
qualificações que seguem em paralelo com a qualificação maior, que vai do
desprazer ao prazer. O acúmulo de tensão à redução de tensão. O princípio da
inércia é também um princípio afetivo. Um princípio que vai transformando
aquilo que é quantidade em qualidade. Essa é a tese freudiana: os afetos são,
por princípio, qualidade. Diz o Freud também: porque eles são qualidade, eles
afetam a consciência; e que não há afetos inconscientes. Há um pequeno reparo
nisso, no Mal-Estar na Civilização, quando ele vai falar da culpa inconsciente.
Mas, em tese, o que está no inconsciente, o que é recalcado, é sempre o
significante ou a representação. O afeto não é recalcado, é reprimido. Um é Verdrängung
(recalque), o outro é Unterdrückt (repressão). A repressão é, no fundo,
a transformação de um afeto em outro. E isso a gente faz cotidianamente. A gente
tenta modular os afetos quando cria racionalizações, quando a gente puxa a
leitura ou interpretação dos fatos para um lado ou para o outro, quando a gente
lida com nosso desejo. Todos esses processos, eles exigem deformações simbólicas,
mas eles exigem também deformações imaginárias. Essas deformações imaginárias,
pareadas ou conjugadas com as deformações simbólicas, são as deformações ou
repressões do afeto.
E a repressão última é aquela que
vai inibir o afeto na sua fonte, que vai dizer assim “nem começa!”. A repressão
e a transformação se dá na evolução do afeto, na distensão do afeto. Mas há
esse mecanismo em que se vai tampar a evolução ou a expressão do afeto, que se
pode chamar de repressão. O que vai acontecer é que se a repressão, enquanto repressão do afeto em
sua fonte, começa a se tornar mais e mais presente, a gente vai ter
manifestações de angústia. Muito do pânico, da ansiedade, da angústia, que são
cada vez mais manifestações do sofrimento contemporâneas, tem a ver com
retenção de afeto.
No começo da psicanálise, o Freud
comparava e contrastava a histeria de retenção, que é aquela que está baseada na
não exteriorização de afetos, na não expressão de afetos; com a histeria de
defesa ou de transferência, onde o afeto é desligado da representação e a
partir disso tem uma trajetória que é própria, e relativamente independente do
que foi recalcado.
O afeto é uma categoria primária
da psicanálise. Para o Freud, há uma teoria que liga os afetos à repetição:
cada vez que se experimenta o afeto, você refaz o arco histórico das outras vezes
em que esse afeto foi vivido. Então experimentar alegria é reviver todas as
situações que se viveu alegria na vida; experimentar tristeza é refazer todo o
clichê cristalográfico, como diz o Freud, que marca o afeto na sua linha de
continuidade.
Daí que a clínica com os afetos seja
uma clínica longa, uma clínica que pra você alterar o estado de ansiedade basal
mais ou menos presente, demora muito tempo. Alterar um estado de fobia social,
de pânico, também toma muito tempo porque justamente vai se tentar transformar
algo na experiência contínua dos afetos. É o que a Joyce McDougall neste livro
fantástico chamado “Teatros do Eu”, vai tematizar com a ideia da alexitimia,
que é a incapacidade de nomear afetos. Quando se perde a capacidade de dizer e
reconhecer o que se está sentindo naquele momento, se efetiva um tipo
particular de repressão. É como se aquele afeto começasse a se desmoronar, se
desfazer, ele começa a se transformar em outras coisas. E um dos destinos é a
angústia e o outro destino é a dor. Então a teoria da hipocondria, que está bem
desenvolvida neste trabalho do Aisensteinm, “Hipocondria”. Veja também os
trabalhos da (Maria) Helena Fernandes, sobre hipocondria, que são muito muito
interessantes: eles mostram que há um tipo de defesa que se baseia apenas nas transformações
da consciência, apenas na domesticação dos afetos, e que muito provavelmente há
formas de terapia que infelizmente se concentram apenas nisso e que acabam
produzindo efeitos colaterais, iatrogênicos, em termos de dores, de formações
somáticas. Que são diferentes das conversões: as conversões tem a ver com o
recalque; as somatizações tem a ver com repressão."
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